quinta-feira, 19 de março de 2015

Todo conhecimento é autoconhecimento

SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

Por Glauce Souza Santos
Resumo:

A terceira tese apresentada por Boaventura de Sousa Santos no que se refere ao paradigma emergente na ciência é a de que todo conhecimento é autoconhecimento. Boaventura inicia esta discussão fazendo um retrospecto de como na Ciência moderna o conhecimento objetivo foi a base para a construção da distinção dicotômica SUJEITO/OBJETO. Afirma que a passividade da distinção SUJEITO/OBJETO nas Ciências naturais gerou um atraso nas Ciências sociais. Por isso foi necessário que houvesse uma articulação metodológica entre a distinção epistemológica entre sujeito/objeto com a distância empírica entre sujeito/objeto. A Antropologia e a Sociologia evidenciaram isto. Na Antropologia a distinção sujeito/objeto aceitou ou exigiu que a distância fosse relativamente encurtada através de metodologias que obrigavam uma maior intimidade com o objeto, trabalho de campo etnográfico. Na Sociologia, a distinção epistemológica obrigou que esta distância fosse aumentada por meio de metodologias de distanciamento. As vibrações destes movimentos vieram a explodir no período pós-estruturalista. Foram a Antropologia e a Sociologia que questionaram o status quo (estado atual) motodológico e as noções de distância social em que ele assentava. Nas Ciências sociais há o regresso do sujeito demonstrado na física quântica, que o ato de conhecimento e o produto do conhecimento eram inseparáveis. O aprofundamento do conhecimento segundo a matriz materialista desembocou num conhecimento idealista.  A nova dignidade da Natureza mais se consolidou quando se verificou que o desenvolvimento tecnológico desordenado nos tinha separado da natureza em vez de nos unir a ela. Assim, o desconforto da distinção sujeito/objeto que sempre houve nas Ciências sociais propagava-se para as Ciências naturais. Nas palavras do sociólogo, o sujeito regressava na veste do objeto.
Boaventura aponta a partir dos conceitos de mente imanente, mente mais ampla e mente coletiva de Bateson que Deus (foragido da Ciência moderna) pode regressar, mas de uma forma transfigurada, onde não há nada de divino, senão o nosso desejo de harmonia e comunhão com tudo o que nos rodeia. Segundo ele, um novo conhecimento (gnose) está em gestação. O sociólogo justifica sua posição de que todo conhecimento é autoconhecimento afirmando que “O objeto é a continuação do sujeito por outros meios.”
Para Boaventura, a ciência moderna não é a única explicação possível da realidade e esta não é melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia, da religião, da arte ou da poesia. Ainda chama atenção para o privilégio de uma forma de conhecimento assente na previsão e no controle dos fenômenos que segundo ele, nada tem de científico, é apenas um juízo de valor e de que a explicação científica dos fenômenos opera como autojustificação da Ciência enquanto fenômeno central da nossa contemporaneidade. Sendo assim, afirma: a ciência é autobiográfica. As nossas trajetórias pessoais e coletivas (os valores, as crenças e os prejuízos que transportam) são de certa forma a prova íntima do nosso conhecimento. Este saber corre hoje subterraneamente, clandestinamente nos não-ditos dos nossos trabalhos científicos.
Boaventura assegura que no paradigma emergente, o seu caráter autobiográfico e auto-referenciável da ciência é plenamente assumido. Relembra que a Ciência moderna deixou como legado um conhecimento funcional do mundo que alargou extraordinariamente as nossas perspectivas de sobrevivência, fazendo enxergar não tanto o sobreviver, mas o saber viver, pensando numa outra forma de conhecimento (compreensivo e íntimo) que nos una pessoalmente ao que estudamos.
Por fim, Boaventura pontua o fato da Ciência do paradigma emergente ser mais contemplativa do que ativa e a qualidade do conhecimento aferir-se muito mais pela satisfação pessoal que dá a quem adere e o partilha. No que se refere a dimensão estética da ciência, pontua também que esta tem sido reconhecida por cientistas e filósofos da ciência. Há também, na criação científica no paradigma emergente, uma proximidade assumida, da criação literária ou artística. Assim, o discurso científico se aproxima cada vez mais do discurso da crítica literária subvertendo a relação sujeito/objeto que o modelo emergente deseja operar. A ressubjetividade, o conhecimento científico ensina a viver e traduz-se num saber prático, quarta característica da ciência pós-moderna.