quinta-feira, 24 de abril de 2014

Um feriado, um ralo e uma bunda


                 Para Maria Luiza Carôso
                (Obrigada pela indicação do filme!)

         Geralmente, para se livrar do tédio gerado por dias ociosos, como o feriado do dia 21 de abril – sem muito que fazer -, assisto a algum filme. Mas não é um filme qualquer e sim um daqueles inúmeros que estão numa imensa lista pessoal, esperando o seu momento.
          Acredito que cada pessoa tem a sua lista cânone1 de filmes e livros que pretende ler antes de morrer. Certamente, quando a morte chegar as tais listas ainda estarão à todo vapor, pois, pelo menos as minhas, não param de crescer. O principal motivo que faz minha relação de livros crescer com frequência é o fato de não ter dinheiro para adquirir as obras que mais desejo ler.  No Brasil, os livros ainda são muito caros. Outro motivo é a falta de tempo para se dedicar à leitura. Já a minha lista de filmes, cresce ininterruptamente porque moro numa cidade que não tem sequer um cinema. Como uma cidade pode ter quatro cinemas na década de 70  e hoje não ter nenhum? Isso é, no mínimo, estranho. “A única coisa que vai pra frente em Jequié é o atraso” sentencia um tio meu que mora longe daqui, mas entende da política, da economia e da cultura desta terra quente de meu Deus. Mas isso aí é conversa para outro momento.
Voltemos ao feriado. Neste dia, escolhi um filme nacional do ano de 2007, intitulado “O cheiro do ralo”. O longa-metragem é baseado no romance homônimo de Lourenço Mutarelli.  Acessei o you tube para assistir ao filme e pretendo descrevê-lo de forma sincera e clara. Inicialmente, penso em um adjetivo para atribuir a ele e concluo que posso fazer uso do mesmo adjetivo que usei para a situação do cinema na cidade de Jequié, estranho. O filme é estranho comparado com o padrão aprovado pelas pessoas, na maioria das vezes. Coisa rara é encontrar gente que goste de filmes sem ação e sem besteirol. O cheiro do ralo é assim, parado, irônico e possui uma atmosfera existencial, não tem cenas de ação e não tem besteirol. O longa é ambientado na grande São Paulo, provavelmente, da década de 70 e o personagem principal é Lourenço (interpretado por Selton Melo), um homem que compra e vende objetos usados, na maioria das vezes de grande valor sentimental, que para ele não significa nada. Lourenço compra os objetos apenas quando julga conveniente ou quando se agrada da cara da pessoa que está vendendo. Seus critérios, definitivamente, não dialogam com a necessidade das pessoas. Ele é esquisito e desprovido de qualquer tipo de afeto ou solidariedade humanista para com o seu semelhante.  Seu dia a dia é marcado pela falta de misericórdia e pelo embrutecimento humano, demonstrando sempre seu poder aquisitivo e como um algoz debochando friamente da miséria alheia. Lourenço custa a entender que também está num estado de miséria profundo. Por isso, insiste em explicar aos seus miseráveis vendedores que o cheiro incomodativo em sua sala é do ralo do banheiro que usa. Lourenço não consegue resolver o problema do mau cheiro, mas sente-se intensamente dependente e atraído  por ele, pois o odor é unicamente dele. Mas o cheiro que mais incomoda Lourenço, é o dos traumas que talvez nunca quisesse resolver. Quiçá, ele seja a melhor representação do homem-bicho que já vi no cinema brasileiro. E se aproxima do homem confundido com um bicho descrito no poema “O bicho” de Manuel Bandeira. Ambos apresentam os mesmos motivos que os levam, respectivamente, ao cheiro do ralo e ao lixo.  Há apenas um grande desejo na vida de Lourenço que o leva todos os dias a uma lanchonete, um dia comprar a bunda da moça que trabalha lá.  
Mesmo não tendo besteirol algum, o filme nos arranca risadas. Algumas cenas nos faz rir um riso consciente de que a condição humana pervertida pelo capitalismo selvagem - que nos leva à compra e venda da nossa própria alma - seria cômica se não fosse trágica, como o próprio desfecho do filme.    

1 Utilizo o termo “cânone” não no sentido legalista, mas partindo do significado diversificado que o cânon possui ao empregar inúmeras vozes. E partindo daí, o termo expressa movimento, brincadeira, descoberta e, no sentido retórico, invenção. 

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