ARFUCH,
Leonor. Vidas de escritores. In: O
espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea. Tradução Paloma
Vidal. Rio de Janeiro. EdUERJ, 2010. (p. 209-237)
SÍNTESE
O texto Vidas
de escritores de Leonor Arfuch apresenta reflexões a respeito do gênero entrevista. Segundo ela, dentre os
territórios conquistado por este gênero, o dos escritores foi um dos
privilegiados. Para Arfuch, o interesse na vida dos grandes escritores do
século XIX não cessou de se incrementar, e a compilação em livros de entrevistas
de escritores publicadas, primeiramente na impressa, já se transformou num
clássico dessa categoria editorial.
A teórica afirma que o que se pede a essa fala que
reduplica a escrita é que o autor preste contas da unidade do texto que leva seu
nome e revele o seu sentido oculto, além de que articule com sua vida pessoal e
com suas experiências vividas.
Utilizando trechos de entrevistas realizados com
diversos escritores, o texto discorre a respeito do “autor” no intervalo entre
herança e criação, entre a imposição dos gêneros instituídos e a marca de sua
subjetividade, entre o que escreve e o que declara cotidianamente.
FICHAMENTO
- Vidas e obras
“Nesse falar sobre os livros, as vicissitudes da
autoria se articulam, com ênfase peculiar e detalhamento, com a vida pessoal.”
(p, 211)
“(...) não haverá detalhe semiótico do entrevistador.
(...) quando se trata de escritores, esse detalhe adquire um novo valor, (...)
vida e ficção, a solicitação de ter que distinguir o tempo todo esses limites
borrados (...) parece um destino obrigatório do métier de escritor.” (p, 211)
“O ‘momento autobiográfico’ da entrevista, como toda
forma em que o autor declara a si mesmo como objeto de conhecimento, apontará
então para a construção de uma imagem de si, ao mesmo tempo em que tornará
explícito o trabalho ontológico da autoria, que se dá, sub-repticiamente, cada
vez que alguém assume um texto com seu nome.” (p, 212)
“Assim, o dialogo na proximidade com o autor tentará
descobrir, além da trama e das vozes, das adivinhações e das armadilhas do
texto e mesmo das ‘explicações’ preparadas para a ocasião, aqueles materiais
indóceis e misteriosos da imaginação, de que maneira a vida ronda a literatura
ou a literatura molda a vivência.” (p, 212)
“A conversa com escritores se torna, assim, um
exercício tão clássico quanto especializado, cujo resultado não se esgota na
primeira publicação, mas antes se integra às palavras ditas no universo
atribuível ao autor, com o mesmo status que
suas cartas, diários íntimos, caderno de notas, rascunhos, suscetível de ser
citada como testemunho, de ser compilada em forma de livro, de se transformar
em leitura teórica e, evidentemente, em material para uma biografia.” (p, 214)
“(...) a entrevista oferece um terreno iniciático, um
material embrionário para retomar e desenvolver, ao mesmo tempo em que assegura
um diálogo suplementar com sua posteridade.” (p, 214)
“A entrevista oferecerá, assim, a possibilidade não
somente de se debruçar sobre a própria autobiografia (...) mas também de assentar
teoria sobe esse gênero literário incerto, de deslindar-se da referencialidade,
de enfatizar, (...) sua impossibilidade constitutiva, sua escassa distância do
ficcional, suas ‘tretas’ e os jogos múltiplos de interpretação que é capaz de
propor a seu leitor.” (p, 216)
“(...) a imersão no mundo da vida do autor ou numa
‘profundidade’ (...) não assegura nada sobre a ‘identidade’ em questão.” (p,
217)
“Da mesma maneira que a respeito de outras posições
de autoridade na sociedade (...) a reportagem funcionará aqui como ritual de
consagração, gerando seus próprios mitos: o escritor ‘difícil’, pouco inclinado
aos encontros; a celebridade que fala em todos os lugares; o ‘resignado’, que
suporta pela enésima vez as mesmas perguntas; o rebelde, que recusa os percursos
propostos; o ‘midiático’, que administra tão bem sua imagem pública que acaba
fazendo de sua vida sua obra.” (p, 217 e 218)
“(...) a atividade do diálogo com o entrevistador, no
leque de suas topologias, não deixará de ser, virtualmente, relevante para
ambos: por um lado, oferecerá sempre a possibilidade de descobrir alguma aresta
impensada da – própria – criação ou algum ‘ar familiar’ não advertido em
relação à obra de outros autores; por outro, constituirá uma mostra
‘representativa’ do que ocorreu ou ocorrerá com a recepção da obra.” (p, 218)
“(...) se caráter de mediador faz com que seu
questionário não deva refletir somente a opinião pessoal, mas também certas
hipóteses (...) a entrevista ecoa, recolhe o que está no ambiente, certo
‘murmúrio’ do discurso social, ao mesmo tempo em que prefigura e constrói
modalidades de apropriação.” (p, 218)
- A cena da escrita
“ Por diferentes caminhos, a interrogação leva à
gêneses da escrita, aos bastidores do trabalho do escritor.” (p, 219)
“(...) como deslindar o velho mito romântico do autor
inspirado na mais moderna – e pálida – imagem do trabalhador obstinado? (p,
220)
“(...) a entrevista faz disso uma especialidade, na
medida em que traz duas iamgens à cena: o vislumbre da inspiração, da
iluminação súbita e casual, mas, acima de tudo, a rotina do trabalhador. (p,
220)
“A liberdade do escritor – e da criação – estará
assim condicionada pelos mesmos parâmetros que regem qualquer ofício (o
horário, o esforço, a angústia), mas também espreitada por uma síndrome mais
específica, o ‘bloqueio’, a falta de inspiração...” (p, 221)
“A cena da escrita – como em toda autobiografia – é,
por sua vez, indissociável de um começo.” (p, 222)
- A cena da leitura
“Se a infância do escritor se distingue de outras,
nessa inevitável evocação que toda pergunta pelo começo suscita, é pela marca
dos livros.” (p, 224)
“A cena da escrita se desdobra, assim, quase
obrigatoriamente, em outra cena mítica: a da leitura, que pode ser também a das
vozes dos mais velhos, com as quais se tece a identificação.” (p, 224)
“Seja como gesto corporal de iniciação, abertura a
uma verdadeira intimidade, relação amorosa com o livro-objeto ou ligação
perdurável através da temporalidade, a cena da leitura do escritor é um
biografema.” (p, 224)
“Se para Barthes a cena da leitura marca o caráter
desejante do sujeito, a oscilação entre prazer e gozo, seu eterno caminho
metonímico (...) a recorrência dessa cena em relatos autobiográficos (...) de
escritores de diferentes épocas a torna uma fábula de identidade.” (p, 225)
“Mas também toda passagem da ‘vida’ à escrita, (...)
corresponde a um ato de leitura, que recorta, do curso do indiferenciado, os
elementos suscetíveis de entrar na composição. A leitura do escritor fala,
(...)” (p, 225)
“Como sugere Paul de Man lendo Proust (1979, p. 57),
a outra coisa que essa cena pode nos dizer vai muito além do detalhe dos
livros; ela diz mais do que diz.” (p, 225)
“Cena que está muito longe de ser apenas uma
ancoragem mítica da infância (...)” (p, 225)
“Se por meio de suas leituras o escritor define sua
dupla identidade como autor/leitor (...) no traçado dessa cartografia não pode
faltar a hipótese em torno de sua própria leitura como autor, como imagina seu
‘leitor modelo’ (...) e como se confronta, ou deveria se confrontar, ao produto
de sua escrita.” (p, 227)
“A indagação em torno do leitor ou da resposta
suscitada pela obra, (...) também pode produzir pequenas peças ensaísticas em
que se perfila de certo modo a filosofia do autor, contribuindo assim, de maneira
talvez indireta, para a (re) configuração do público (...) em suma, para uma
intervenção (...) no horizonte de expectativas.” (p, 228)
- Dos mistérios da criação
“Se a entrevista incursiona confortavelmente no
terreno da autobiografia, situando a pessoa do autor numa trama de pequenos
gestos cotidianos, (...) se penetra em zonas destacadas de sua infância e de
sua vida, elaborando hipóteses sobre sua correspondência na escrita, se oferece
um terreno propenso às memórias, ao diário intimo e à confissão, que outro
interesse poderia despertar, além disso, no leitor/entrevistador? (...)
ensinamentos sobre como escrever, conselhos, apreciações sobre os
contemporâneos, sobre o livro que teria gostado de escrever, rivalidades,
fofocas, opiniões sobre teoria e/ou literatura ou sobre qualquer outra coisa.”
(p, 229)
“Mas há, obviamente, a obra, que também pode falar
através dessa voz. E a obra é um mecanismo prodigioso, cujo mistério a ‘pessoa’
não chega a desvelar, uma distância que já se emancipou de seu demiurgo,
apropriada, internalizada pela fantasia do leitor. É por isso que a pergunta a
respeito dela será sempre aproximativa (...)” (p, 229)
“No entanto, a curiosidade ronda essas coisas: como
surgiu uma ideia, um nome, um rosto, desenlace, como aquele personagem que já
faz parte da própria interioridade adquiriu carnadura e impôs um destino à
narrativa...” (p, 229)
“(...) talvez as vidas criadas no trabalho de
artífice da escrita (...) tenham frequentemente para os leitores uma atração
inclusive maior do que as vidas ‘reais’.” (p, 232)
“(...) toda literatura – escrita – é autobiográfica
na medida em que participa desse plano concreto, não por aglutinar
convencionalmente um conjunto de tropos, mas por compartilhar, mesmo sem
confessar, medos, paixões, obsessões, fantasias.” (p, 233)
“Além disso, talvez (...) as formas autobiográficas
canônicas sejam escapes verdadeiros da alienação do escritor no texto de
ficção, da solidão do si mesmo à qual chega pelo caminho de sua obra, a esse
estranhamento de “um ‘Ele’ que substitui o ‘Eu’ (...)” (p, 233)
“Assim, o diário, o mais elusivo e sintomático
registro da vida, não seria essencialmente confissão, relato de si mesmo, mas
um memorial, um lembrete de quem é quando não escreve, uma ligação aos detalhes
insignificantes da realidade, como pontos de referencia para ‘se reconhecer
quando pressente a perigosa metamorfose à qual está exposto’ (Blanchot, [1955]
1992, pp. 22-3)” (p, 233)
“ O diário do escritor tenderia, (...) à preservação
do tempo comum, do tempo que continua, fechado, como salvaguarda de uma
felicidade possível.” (p, 234)
“Voltando ao nosso gênero (...) poderia se postular
do mesmo modo que e toda escrita se torna hoje autobiográfica, embora esteja
muito longe dos confins do cânone, em grande medida pelo trabalho da
entrevista, por essa investida sobre o tempo, a privacidade,a historia, a pessoa (...) por essas
rememorações, reais ou fictícias, que a maquina jornalística o obrigará a
contar.” (p, 234)
“O reenvio entre anúncios, manchetes, notas,
entrevistas e resenhas tece uma trama peculiar em que, às formas mais ou menos
canônicas, se soma uma oferta de escritas de ficção, ensaísticas e até
acadêmicas que aparecem necessitadas de se certificar sobre a vida e/ou a
subjetividade do autor.” (p, 235)
“Essa insistência em nos convencer da proximidade
(...) entre vida e obra, em acentuar o caráter (pretensamente) testemunhal,
autobiográfico ou autorreferencial de textos que não o são explicitamente, é
mais uma prova da extensão do espaço biográfico contemporâneo, enquanto
ancoragem obsessiva (...) numa hipotética unidade do sujeito.” (p, 235)
“ (...) a entrevista de escritores se desdobra como
um suplemento necessário. O que é dito ali não só tende a alimentar a lógica
insaciável do mercado, a (auto)produção do autor como figura pública, sua
imagem como ícone de vendas, como suporte do gesto da assinatura (...) mas
também a relação, antiga e fascinante, entre autores e leitores, por caminhos
(...) que escapam ao texto e que nem por isso lhe são totalmente alheios,
caminhos que levam talvez, inadvertidamente, a outros registros do conhecer
(...)” (p, 236)
“E, se para o leitor a proximidade construída na
entrevista será suscetível de aportar dados, matizes e emoções não encontrados
em outro lugar, para o escritor, o desafio dialógico será capaz de compensá-lo,
por sua vez, da carência ou da insuficiência (...) da autobiografia.” (p, 237)
“(...) a entrevista é talvez, em seu devir já
canonizado, a outra voz apropriada para quem quiser falar. Um falar inconcluso
por natureza, em troca do árduo trabalho de perguntar.” (p, 237)
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